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Âncora 1: palestina

costuras urbanas

A PALESTINA E ALUTA UNIDA.png

Colagem: autoral

Áudio: relato de memória de Dona Lurdes, moradora de Palestina desde 1969.  Gravado em: 04 de setembro de 2020.

A Palestina é resistência,

e Valéria também

seguem algumas reflexões para a gente...

Eu cresci dentro do atelier de costura de minha avó paterna, era uma “sala quebra-cabeça”, observava fascinada o quanto ela era certeira em conectar cada pedacinho de tecido com suas linhas e agulhas tão pequenas, e daquilo surgir uma estrutura tão complexa que era impossível perceber os inícios e entremeios das tramas que a linha teceu. Certa vez, Dona Lurdes da Palestina me contou o quanto sua presença na comunidade era um grande fio condutor, ou mesmo uma linha de arremate, que muito do que começou por lá surgiu de sua casa e de alinhavos, suas costuras estão firmes até hoje.

O território do bairro de Palestina foi unido ao território de Valéria até o momento em que se estruturou o traçado da BR-324, uma cisão bem definida pela ação do poder público. A estrada está em relevo mais baixo, e o bairro se desenvolve em uma região bastante acidentada, com picos e “baixadas” bem marcados na paisagem, com área menos que 1 Km² (CONDER INFORMS, 2016). Me contam que nessas regiões de baixada as(os) antigas(os) moradoras(es) plantavam abacaxi e aipim, e boa parte do terreno pertencia ao Sr. Bida, já que para acessar a Palestina era necessário subir um pequeno beco, chamavam aquela localidade de Bedo de Bida, e assim chamou-se por muito tempo. Palestina e Valéria tem uma conexão muito forte até hoje, esta não é explícita na paisagem ou mesmo na facilitação da mobilidade, esta se dá pelas relações sociais que não se perderam, pelas redes que se desenvolveram ao longo da história de ocupação de ambos os bairros, estas produziram laços que possibilitaram muitas conquistas estruturais em ambos territórios, mas é importante deixar claro que Palestina não é Valéria, ele está ainda mais à margem. O bairro se delineia a partir de processos relacionados, porém individualizados daqueles que ocorreram em Valéria, fazendo emergir movimentos coletivos de moradoras e moradores reconhecidos pela população de Valéria como muito mais atuantes do que aqueles que se desenvolveram por aqui. As forças e fraquezas se dilatam no território mais comprimido e todos os processos se tornam mais evidentes, para compreendê-los é relevante entender o contexto de ocupação de toda a cidade desde o início do século XX.

A família de Dona Lurdes, assim como minha família paterna vieram do Interior da Bahia em busca de alguma oportunidade de melhores condições de vida, tanto sua família quanto a minha vinham de regiões marcadamente rurais e com alguma conexão familiar por aqui, elas evidenciam o contexto impulsionador das ocupações na cidade desde a década de 1940. Nesta época, a ocupação espontânea era bastante comum já que haviam muitas terras disponíveis na cidade, de modo que estas não incomodavam o poder público e os proprietários particulares, com o grande êxodo ambos começaram a resistir (é este o período do Decreto-lei anti-cortiços em 6 de outubro de 1944), culminando nos primeiros movimentos organizados de ocupação coletiva de terras em Salvador (Brandão, 1980). Processo também impulsionado pelo aumento do valor da terra urbana ocasionado pela ação do EPUCS (Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador). Este plano ainda recomendou o assentamento de bairros operários próximo às zonas industriais da península de Itapagipe, local de morada de Dona Lurdes após seu casamento, antes de chegar em Escada (bairro do Subúrbio Ferroviário), bairro que sucedeu sua vinda à Palestina. Neste mesmo período, a fazenda que formava o território, onde hoje é o bairro, vai à falência por conta de irregularidades perante às contas públicas (segundo relatos de moradoras antigas) e este se torna um espaço livre e vulnerável à apropriações. Desta forma, movimentos de invasões coletivas organizam-se e iniciam o processo de ocupação na Palestina no início da década de 1960, é a partir dele que Dona Lurdes migra do Subúrbio com sua família, ocupando um dos terrenos nas baixadas. 

Após marcar seu terreno, em acordo com o morador que habitava ao lado, Dona Lurdes inicia a construção de sua casa, vindo todos os finais de semana (bem cedo) de Escada para Palestina, ela e seu marido tomavam um ônibus que passava por dentro de Valéria, desciam na BR-324 e subiam o beco. Percebendo a disfuncionalidade deste trajeto e o tempo que isto custaria à obra Sr. Moisés os convidou para morar em uma casa de família que não estava habitada lá na Palestina mesmo, colaborando significativamente na qualidade de vida da família, e com a mudança mais rápida em 1969. Este ato colaborativo é sinônimo da sociabilidade de Palestina, que neste período ainda tinham poucas casas e estradas de terra passando por dentro das áreas de mata que ainda persistem, e por ser uma das poucas costureiras no bairro (e por sua facilidade de comunicação e conexão com a igreja católica que já possuía bastante influência na região), Dona Lurdes é uma dos fios de conexão entre moradores que desejavam estreitar estes laços de colaboração necessários e ancestrais. Ao perceber a necessidade de reivindicar estruturas necessárias ao bairro que estava crescendo cada vez mais, estas mulheres já organizadas e com propósitos delineados, perceberam a necessidade de convocar seus maridos e partir disso iniciaram as reuniões de organização da comunidade. A partir destas reuniões organizaram-se os mutirões de construção das casas, reivindicações pela chegada de água (as pessoas utilizavam a água do Rio Coruripe), energia e infraestrutura básicas, até mesmo a escolha do novo nome do bairro que até então era conhecido como Beco de Bida, e ainda, a consolidação desta Organização, com a construção da Associação de Moradores. A organização interna fazia com que mais e mais famílias se instalassem no bairro, independente dos processos reacionários do poder público às invasões na cidade.

Certa vez ouvi da intelectual Aza Njeri¹ que, segundo o filósofo bantu Bunseki Fu-Kiau: “Todo ser humano nasce com um sol interno dentro de si, e é responsabilidade da comunidade, fazer acender esse sol para o livre caminhar na vida”. Apesar de Maafa - que pode ser interpretada como o poder massacrador da colonialidade sobre os povos afrodiaspóricos - sempre ter tentado apagar este sol. Os movimentos de invasão podem ser reconhecidos enquanto um modo de resistência contra Maafa, a disputa pelo espaço urbano é uma ferramenta de reparação. O ato de invadir é uma estratégia antiga de prover habitação, existe desde antes da idealização da cidade moderna, possível através da efetiva gestão coletiva conectada ao sentimento de poder e de identidade relacional entre as(os) invasoras(es), aqui em Salvador o termo “invasão” é disseminado e bem aceito por quem as produz, colocando a tona a conflitividade que existe (MOURA, 1990). Onde há poder, lá estão as recusas, tanto Palestina quanto Valéria são a efetivação destas resistências, movimentos não-passivos não exteriores a este poder (FOUCAULT, 1988), ou seja, movimentos conscientes da necessidade e da legitimidade de sua existência, cunhados no fortalecimento de um modo de ser que recusa as imposições (os padrões) cunhados pela poder hegemônico/por Maafa. 

É necessário olhar para estes movimentos que fundaram nossos territórios, compreender a complexidade da luta assumida por nossas(os) ancestrais, uma luta em comunidade, possível e necessária para acender nosso sol, a fim de apertar os nós que nos fizeram existir, que cada dia mais, parecem estar se afrouxando.

__________________

¹Fala de Aza Njeri, escritora brasileira e estudiosa sobre afrofuturismo, no evento online “O futuro é preto” em julho de 2020. 

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b912jgriot8&t=8322s

REFERÊNCIAS

Colagem:

Fotografia de Dona Lurdes (2020). Fonte: acervo pessoal.

Fotografia da Palestina em visão exterior a partir da BR-324. Fonte: acervo pessoal.]

Vídeo: O sol ilumina tudo. 

Filmagem (autoral) exterior ao bairro da PalestinaFonte: acervo pessoal.

Áudio relato de memória de Dona Lurdes, moradora de Palestina desde 1969.  Gravado em: 04 de setembro de 2020.

Texto:

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FU-KIAU, Kia Bunseki. Kindezi: The Kongo art of babysitting. Baltimore: Inprint Editions, 2000. 

MOURA, Milton. Notas sobre o verbo invadir no contexto social de Salvador. Cadernos do CEAS,

Salvador, n. 125, p. 25–41, jan.-fev. 1990

NASCIMENTO, Manoel. É a Favela o modelo de um "urbanismo insurgente"? Pistas para um estudo das formas disciplinar e securitária de produção do espaço urbano de Salvador (1946-1988). Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades, Salvador, n. 246, jan./abr., p. 140-168, 2019. DOI: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2019.n246.p140-168

Painel de informações: dados socioeconômicos do município de Salvador por bairros e prefeituras-bairro /Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia (INFORMS - Organizador). 5ª ed. Salvador: CONDER/ INFORMS, 2016. 189 p.: il

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