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Âncora 1 cidade

Olha a água!

Aprofundando: Sobre produzir um trabalho na quarentena

A ÁGUA CHEGOU PARA VALERIA.png

Colagem: autoral

Áudios:

- 1ª voz:  relato de memória de Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

- 2ª Voz: relato de memória da minha avó Avani (materna), 66 anos, moradora nascida e criada .  Gravado em: 12 de fevereiro de 2020

Aqui já é cidade

Existe um conflito muito perceptível quando conversamos com quem é daqui sobre qualquer questão relacionada aos seus afetos, sentimentos, sensações ou percepções sobre o bairro. Há uma agilidade em deslanchar as problemáticas que nos atravessam a todo momento, em um misto de lamentos nostálgicos sobre como está e o como era ou como lembra-se que era aqui, estes levam para memórias do cotidiano em que a comunidade é protagonista no território e não aquelas problemáticas que mencionara no começo, enaltecendo um sentimento misto de saudade e orgulho (aqui falo sobre os diálogos com as(os) mais velhas(os). Nada é linear, essas falas se movimentam em um emaranhado bem parecido com o movimento das ruas daqui, caminhão, carro, moto, pés, cavalo, carrinho de mão, ônibus, carrinhos de bebê, vento, chuva, muito sol, anda, se apressa, corre, corre. Aqui é bairro, aqui é cidade, aqui já é a cidade.

Este movimento me faz pensar muito sobre a vida na cidade, como ela foi, como ela é, como ela acabou sendo, porque ela acabou sendo assim e como ela será. A cidade pode ser apreendida como um espaço vivido e sentido a partir das imagens mentais que os habitantes fazem de sua urbanidade e do que a compõe, segundo Lynch (apud Souza, 1989), assim o bairro pode ser lido como um dos seus referenciais básicos, e pode ser a partir dele que se cria uma leitura ampla sobre o quanto as questões urbanas estão interferindo em nossas vidas. Este é o ponto. Fomos alienadas(os) a reproduzir/compreender que a cidade é uma “coisa” dotada de vida própria que está ruminando seus problemas, e dela as questões se reproduzem e reproduzem sendo agente das próprias dinâmicas, desassociando estas das interferências das esferas sociais, do trabalho, do consumo, ou seja, daquelas que estruturam o próprio sistema capitalista que, cria um imaginário em que nós (pessoas/seres humanos) produzimos, mas não controlamos o processo desta produção, e desta forma, não temos conexão alguma com o produto disto (Souza, 1989). 

Contextualizando, é o mesmo que pensarmos que os processos que compõem e criam nosso bairro cotidianamente qualificando suas questões (sejam elas quais forem), simplesmente “são” por fatores neutros, ocorrendo sem interferências e interesses vindos de diversos agentes, sejam eles políticos, econômicos, ou sociais. É consequência subjetiva e estratégica, disto que Souza denomina “reificação do urbano”, uma ampliação das desigualdades, à medida que se especializa as funções nos espaços conforme interessar, produzindo segregações socioespaciais. Existe um discurso comum do “esquecimento” do poder público sobre Valéria, mas se voltarmos ao fragmento “O Sonho de Progresso”, é perceptível que este esquecimento não existe, pelo contrário, há muito interesse sobre este território, ele carrega potências ambientais (históricas e geográficas) que retiram este estigma. De certo, este sentimento de esquecimento vem marcado pelo desequilíbrio entre o que se projeta ao espaço urbano (de cima para baixo) e quais são, de fato, as necessidades, desejos e interesses dos habitantes, e o que faz sentido a sua sociabilidade. Ou mesmo pela massiva afirmação deste lugar esquecido do território-margem da mídia hegemônica (exemplos podem ser apreendidos ao navegar pelo site). Reafirmar este pensamento salienta a efetividade desta ação alienante, ao passo que esta consegue retirar a percepção crítica do espaço pela(o) habitante, e reforça o empobrecimento de seu elo cultural com o bairro (Souza, 1989), ou seja, cria desenraizamento.

FIlmagem: autoral. Cenas da região desmatada na antiga Fazenda Valéria às margens da BR-324.  Gravada em: 01 de setembro de 2020

O que vão fazer aqui, afinal?

Há muito tempo, mais de 10 anos atrás, desmataram uma enorme área da antiga Fazenda Valéria que fica à margem da BR-324. O que se falava é que ali seria construída a mais nova Rodoviária de Salvador. Foi uma obra enorme de desmatamento e aterramentos, muitas máquinas e muita mobilização daquele lado. Animais entrando em casa vizinhas ao terreno, rios secando... Muita coisa mudou por ali. Virou um deserto no meio da cidade. 

Eu fui colocada a refletir sobre estas questões porque tive acesso ao conhecimento que me fez questioná-las, eu estou me graduando para pensar/refletir/teorizar/agir/intervir na cidade. Este é um conhecimento aprisionado pelas fronteiras da academia que muito dificilmente chegaria aos territórios como Valéria, se alguém (daqui) não ultrapassasse estas fronteiras, e ainda assim não foi simples acessá-lo. Sendo assim, compreendo a necessidade política de ao menos demonstrar tais complexidades intrínsecas ao bairro, tentando, criar fagulhas de percepção sobre o quanto este é um território político ativo, foco de mecanismos que retiram aquele sentimento de orgulho latente nas entrelinhas dos relatos que mencionei acima, e o substituem pela massiva afirmação das problemáticas, violências e desigualdades. Quando afirmo que este é um território político ativo, não me refiro apenas aos mecanismos de atuação do estado, mas também às performances cotidianas (Martins, 2003) das moradoras e moradores que nem sempre recebem os adjetivos reconhecíveis de autonomia, resistência e liberdade, mas que são modos destas e destes construírem, não apenas seus locais de moradia, mas também uma oportunidade de projetar seu próprio mundo (Simone, 2019).

Dona Neném estava me contando o que aconteceu com a Lagoa da Paixão

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Sobre o que Dona Neném está falando?

Vídeo retirado do canal no Yoube da Secretaria de Comunicação da Bahia (Secom). Postado em 2013.

Acessado em: 01 de novembro de 2020.

Simone Weil (1943) reflete que o enraizamento traz consigo a necessidade mais visceral do ser humano, a necessidade de fazer parte e ser atuante em uma coletividade, esta possibilita reconhecer suas heranças e, a partir da ressignificação das lutas, construções, ideias e tradições de suas/seus ancestrais baseiam suas realizações, ou seja, um passado que serve de inspiração para o futuro. Estas raízes podem ser acessadas pela memória das(os) nossas(os) mais velhas(os), produzindo um vínculo com o passado capaz de extrair forças para produzir a formação de identidades (Bosi, 2003).

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"Seria vão voltar as costas ao passado para só pensar no futuro. É uma ilusão perigosa acreditar que haja aí uma possibilidade. A oposição entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; nós é que, para construí-lo, devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso ter, e não temos outra vida, outra seiva a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra mais vital que o passado." (Weil, 1943, p. 418)

Definir nossas próprias identidades é sermos protagonistas da definição das nossas próprias realidades e de nossas próprias histórias, tornando-se assim um “sujeito” e não “objeto” das escolhas alheias e reféns das identidades criadas por outros (Hooks, 1989). Ter consciência dos nossos protagonismos inscritos no cotidiano, é o reconhecer que também somos agentes definidores do espaço, e que é a partir desta experiência social que reafirmamos nossa própria cidadania, ou seja, a luta de afirmação pelos direitos (Silva, 2010), esta é uma ação política da lucidez, frente às violências a que somos expostos todos os dias, ao menos a partir dela, inscrevemos o direito à liberdade no qual podemos imaginar e reescrever futuros possíveis (Imarisha, 2016)

Irmã Jacira me conta da exigência da Prefeitura sobre a Escola Comunitária, o que surgiu a partir disso e outras questões bem mais complexas

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REFERÊNCIAS

Colagem

Fotografia da Lagoa da Paixão (sem data encontrada). Fonte: acervo pessoal.

Áudios

Áudio 1: Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

Áudio 2: Irmã Jacira da ordem das Ancilas do menino Jesus, gestora da Escola Comunitária Paulo VI em Valéria e moradora do bairro. Gravado em: 03 de setembro de 2020.

Texto:

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. [S.l: s.n.], 2003.

HOOKS, bell. Choosing the margins as a space of radical openness. Framework: The Journal of Cinema and Media, no. 36 (1989), pp. 15-23.

IMARISHA, Walidah. Reescrevendo o futuro: usando ficção para rever a justiça. Tradução de Jota Mombaça. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016. 10 p.

SILVA, Paulo Renato da. Memória, História e Cidadania. Cadernos do CEOM, Chapecó, SC, ano 23, número 32, jun. 2010

MARTINS, Leda. Performances da Oralitura: corpo, lugar da memória. Revista do programa de pós-graduação em letras, Universidade Federal de Santa Maria (UFMS), Santa Maria-RS, n.26, 63-81, jun. 2003. Disponível em:  https://doi.org/10.5902/2176148511881

SOUZA, Marcelo José Lopes de. O bairro contemporâneo: ensaio de abordagem política. Revista Brasileira de Geografia, RJ, V. 51, fl. 2.

WEIL, S. (1943a) O enraizamento. Em A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Antologia organizada por Ecléa Bosi. 2.ed.ver. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, pp. 411-412.        

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