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INÍCIO_EU VIM DAQUI

os cuidados e a casa de Bisa Lili

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Tenho uma forte memória dos momentos, quando criança, de sair daqui (de ônibus) e chegar até “a cidade”, como sempre sendo uma grande viagem que me nutria de sensações contrastantes, ao mesmo tempo que havia felicidade em explorar um “outro mundo”, todo o processo acabava sendo muito cansativo. Observar os caminhos, os becos, as ladeiras, as baixadas, as escadas, as luzes, a algazarra em movimento, pelas janelas de vidro nos longos percursos daqui para qualquer lugar da “cidade”, fazia ser notável como a vivência daqui era diferente da vivência de lá, não que algo precise ser comparado enquanto melhor ou pior, mas é importante que seja afirmado, ser daqui é diferente de ser de lá. De onde vem tanta diferença?

Eu vim daqui. Minha avó materna me conta que a mãe de sua mãe (nascida em 1932) vivia em um sítio às margens de onde hoje é a entrada do Hospital do Subúrbio, logo no fim de Valéria, já a mãe de seu pai (nascido em 1922) viveu em uma casinha de taipa aqui no meio do quintal, na rua Boca da Mata. Bisa Lili e Vô Bibiu vieram daqui também. Viveram nesta casinha de taipa no meio do quintal, mas logo fizeram outra, de taipa também no quintal mesmo, mas mais a frente, em frente à rua. Esta só se tornou casa de alvenaria quando minha avó estava crescida (minha avó também veio daqui), nela viviam minha avó, sua mãe, seu pai e quem chegasse – e chegava 

eu vim daqui

Colagem: autoral

Áudio: relato de memória da minha avó Avani (materna), 66 anos, moradora nascida, criada  e professora de escolas em Valéria.  Gravado em: 22 de novembro de 2020.

muita gente. Esta relação comunitária com o habitar, ou mesmo esta solidariedade tribal característica de “sociedades primitivas”, como define Hobsbawn (1970) é prática comum e demonstra o quanto os laços são definidores da sociabilidade, caracterizando esta casa tanto como um lugar de habitar ou como um espaço de passagem periódica, ou seja, de referência permanente da coletividade familiar (Marcelin, 1999), da rede de apoio que se estabelece com as(os) moradoras(es) e por quem precisa habitar ali. O mesmo ocorre quando, a partir desta casa central de minha bisavó e meu bisavô, surgem, também no quintal, as casas de quem conseguiu a partir deste núcleo central, “crescer” sozinha(o), como ocorreu com minha avó, sua prima e seu primo, definindo, a partir da construção dessas unidades familiares, um processo de constante criação e recriação de laços de cooperação, e das relações entre hierarquia e autonomia e entre o coletivo e o individual (Marcelin, 1999), muito expressadas na convivência diária.

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Estes laços de cooperação explodem a vivência comunitária do quintal, já que este pode representar assim como a casa, um espaço de passagem, de estar, de cuidar, que influencia para fora sua sociabilidade, desenvolvendo-se mutuamente. Vô Bibiu sempre lidou muito bem com a terra, cultivava flores (acho que vem daí meu amor por elas) e criava animais periodicamente pelo quintal. Já Bisa Lili, sabia muito bem transformar essa lida em alimento, já que minha avó sempre conta como ela era extraordinária em extrair o azeite do dendê, fazer moqueca e farofa e não sobrar nem o caroço, e estava sempre cultivando suas plantas e ervas. Hábitos que eles ressoavam para além dos limites de seu espaço, cavando fontes, zelando por elas e as mantendo para toda a comunidade, um trabalho colaborativo, bem como cultivando hortas em suas margens férteis, mesmo que nem sempre colhessem o justo pelo plantio, ou mesmo as diversas colaborações cotidianas em vizinhança, práticas estruturantes das relações sociais entre moradoras e moradores do bairro. Atos de perpetuação da vida em coletividade, que evidenciam heranças raciais frente à estruturas sociais que as tornam atos de resistência, bem como foram os quilombos, que muito além de espaços de revolta contra o sistema escravista vigente, podem ser lidos como símbolos de liberdade e afirmação racial e cultural, um impulsionador ideológico (Nascimento, 2018).

Ter acesso às memórias ancestrais daqui, me faz compreender que as diferenças entre aqui e lá, persistem desde estes tempos, afinal o passado ensina e a vida continua a se reproduzir seguindo estes mesmos princípios, a temporalidade espiralar que explica Fu-Kiau (1994, apud Martins). Assim como minha mãe viveu, também vivo neste mesmo quintal, o que é ancestral ainda nos habita e esta é minha referência – daqui – de habitar a cidade.

Vídeo: autoral. Produzido no quintal da casa de minha avó materna, figura central na filmagem.

Música: trecho de "Canto da lavadeira / Prelúdio das águas" de As Ganhadeiras de Itapuã.

Gravado em: 10 de Outubro de 2020

REFERÊNCIAS

Colagem:

Fotografia da minha bisavó materna (1952).

Texto:

HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos: estudo sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais dos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro. Zahah Editores, 1970. p. 14

MARCELIN, Louis H. A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano. Mana, Rio de Janeiro vol.5 n.2, 31-60, Out. 1999. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131999000200002

NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e Intelectual: possibilidade nos dias de destruição. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018. 488 p. 1ª edição.

MARTINS, Leda. Performances da Oralitura: corpo, lugar da memória. Revista do programa de pós-graduação em letras, Universidade Federal de Santa Maria (UFMS), Santa Maria, n.26, 63-81, jun. 2003. Disponível em:  https://doi.org/10.5902/2176148511881

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