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Âncora: o que faz

o tronco-espiral

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Colagem: autoral

Irmã Jacira, me contando sobre a necessidade de trabalhar nas "brechas"

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o que faz uma arquiteta-urbanista de/com/para Valéria?

seguem algumas reflexões para o campo...

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Essa questão-desafio paira sobre minha consciência desde que compreendi que neste campo profissional não é tão simples atuar fora do que se enquadra enquanto “padrão” ou mesmo limita-se como o “possível”. Este trajeto desenhado sobre o mapa da cidade demonstra muito mais que uma distância geográfica (em torno de 21Km), na verdade, utilizo esta ferramenta, o mapa, que espera-se produzir uma leitura técnica e literal muito direta, para produzir fagulhas de questões. Por que o saber acadêmico não está mais próximo dessa outra ponta da cidade? Por que nós que temos que ir até lá e não ele vir até aqui? E se nós nunca chegássemos até lá, que olhar ainda seria produzido daqui, lá? 

Na faculdade de arquitetura e urbanismo, ensina-se que nossa atuação existe para solucionar problemas, projetar possibilidades incontestáveis, defender nossas criações sempre as colocando em comparação com parâmetros criados a partir de um contexto elitizado, que reflete o modo de viver de uma minoria na cidade. “Nunca coloque a cama encostada nas paredes, não é funcional” (essa foi a primeira frase que ouvi em uma correção de projeto). A esta “forma de habitar” hegemônica, o campo define enquanto ocupação formal, e o que não corresponde a isso, os bairros não elitistas, chamam de ocupação “informal”, aquele que está “às margens da regulação do estado”, as periferias, favelas, invasões. Muitas aspas necessárias aqui, para compreender o motivo, siga para o Fragmento: “Trajetórias, margens e centralidades”. Rosa (2018) explica que as primeiras abordagens teóricas dos estudos urbanos sobre o processo de “ocupação informal” das cidades, aqui no Brasil, ocorrem entre as décadas de 1960 e 1990, focando refletir sobre a pobreza urbana, sobre a moradia

popular e a produção do espaço urbano. Tais reflexões produziram conceitos que definiam estes espaços enquanto um problema, baseando-se no “discurso das ausências”, principalmente ao colocar-se em pauta temas como violência, exclusão social e ilegalidade fundiária, fazendo-se compreender esta produção como ilegítima, um avesso do que é a “cidade”. A partir disso, grande parte das atuações focadas em territórios-margem¹ guiavam-se na ação de interferir para consertar ou em modos de subverter as precariedades, baseando o resultado a partir dos padrões idealizados do campo, sem de fato atuar em conformidade com as dinâmicas que produzem aquele espaço, gerando ações pouco eficientes ao objetivo que se coloca, qual seja, minimizar estas precariedades.

¹Escolho nomear este bairro, neste estudo, enquanto “território-margem” compreendendo a maior complexidade adquirida a partir deste termo, para abarcar a complexidade também observada em Valéria. O conceito será abordado no fragmento “Trajetos, margens e centralidades.”

Eu mesma, habitando neste território, e compreendendo (ainda que pouco) que tudo que o forma e o faz cotidianamente é muito mais complexo do que apenas um olhar único/universal, já reproduzi discursos (alienados) que enalteciam os mesmos estereótipos, afinal este é o imaginário colonizado a que somos doutrinados a reproduzir. Assim, tanto discursos de correntes de pensamento como na epistemologia decolonialista (Mignolo, 2008) quanto em reflexões antropológicas (Cadena e Blaser, 2018) trazem a perspectiva pluriversal, afirmando a necessidade de olhar o mundo sob a chave da heterogeneidade, reconhecendo as diferenças (“uncommons”) e criando diálogos e possibilitando melhores vivências a partir deste “mundo emaranhado”. Ou seja, compreender que existem muitos mundos dentro deste mundo, o espaço não possui um único centro (como somos doutrinados a acreditar), existem muitas formas de ser e se expressar, o centro do pluriverso somos cada um de nós². Valéria é periférica em relação a que/quem? Discursos universalizantes produzem afirmativas que criam leituras com direcionamentos únicos sobre as condições de vidas urbanas, fechando-se para compreender que um comportamento definido enquanto subalterno pode ser uma ação tática de sobrevivência frente às adversidades, gerando desconhecimento de racionalidades alternativas, e deste modo, o abandono de construção de pensamentos (teorias, estudos, modos de atuar, epistemologias) que dialoguem, de fato, com estas racionalidades (Ribeiro, 2010). Sendo eu, uma arquiteta-moradora-descendente de Valéria, possuo múltiplas vozes dentro de mim, há tempos as compreendia enquanto conflitante, mas a pouco tempo entendi que para enfrentar o poder dominante e criar possibilidades alternativas a ele (Hooks, 1990), será necessário articular estas vozes, para falar a partir daqui, para quem é daqui e para quem não é.

 

²Fala de Morena Mariah, escritora brasileira e estudiosa sobre afrofuturismo, no evento online “O futuro é preto” em julho de 2020. 

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b912jgriot8&t=8322s

Vídeo: música Mama Kalunga de Virgínia Rodrigues, canção que dá nome ao quinto disco (2015) da cantora brasileira, teve direção artística de Tiganá Santana e produção musical de Sebastian Notini.

Disponível em: https://virginiarodrigues.art.br/album/mama-kalunga/

Falar a partir daqui é um trabalho de investigar o que de fato faz esse espaço. Quem são os sujeitos dessa história? Pois é fácil afirmar, só de observar o cotidiano e a paisagem daqui que as articulações são muitas, as resistências e heterogeneidades são ainda mais, as memórias estão muito ativas, afirma-las é uma luta contra o esquecimento (Hooks, 1990). A partir desta investigação, que é também historiográfica – que sim, é uma atuação cabível e necessária a uma arquiteta – é possível abrir espaços dentro da cultura dominante e afirmar lugares de potência, dignidade e integridade a que somos negados, e a partir daí fortalecer vínculos que são capazes de reabilitar vozes políticas e afetivas. O filósofo camaronês Mbembe (2019) caracteriza estes atos como “políticas de visceralidade”, pequenas insurreições que ocorrem pela emergência de formas de resistência que, para curar um sistema nervoso brutalizado pelo capitalismo contemporâneo, baseiam-se na reabilitação dos afetos, emoções, paixões. Desta forma, por em pauta a memória³ e outras referências, na construção de uma outra narrativa sobre a história³ de Valéria, é um ato de nos (re)conectar com o espaço e com nós mesmas(os).

³Neste trabalho a dualidade dos significados entre história e memória é encarada a partir das múltiplas definições de Pierre Nora (1993): “ (...) A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam. (...) A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. (...) (a memória) que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém. (...) A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, a imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. (Norra, 1993, p.3)

REFERÊNCIAS

Colagem

Fotografia de mim (2020)

Áudio

Irmã Jacira da ordem das Ancilas do menino Jesus, gestora da Escola Comunitária Paulo VI em Valéria e moradora do bairro. Gravado em: 03 de setembro de 2020.

Texto

DE LA CADENA, Marisol. BLASER, Mario. Introducion. Pluriverse. Proposals for a world os many worlds. _____ eds. A world of many worlds. Durham: Duke University Press, 2018.

HOOKS, bell. Choosing the margins as a space of radical openness. Framework: The Journal of Cinema and Media, no. 36 (1989), pp. 15-23.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N° 10, p. 12. 1993.

MBEMBE, Achille. Poder Brutal, Resistência Visceral in “Série Pandemia”. N-1 Edições: São Paulo, 2019.

MIGNOLO, Walter D. Desobediência Epstêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política.

RIBEIRO, A. C. T. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: BRITTO, F. D.; JACQUES, P. B. Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010.

ROSA, Thaís Troncon. Pensar por margens. In: JACQUES, P.B; PEREIRA, M. da S. (Org.). Nebulosas do Pensamento Urbanístico. 1ed. Salvador: EDUFBA, 2018, v. 1, p. 176-205. 

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