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Âncora 1 SONHO

o progresso era aqui

UM SONHO DE PROGRESSO.png

Colagem: autoral

Áudios:

- 1ª voz: relato de memória do meu pai Eudes, 51 anos, antigo morador do bairro, chegou em 1985, e se mudou em 2007. Gravado em: 22 de janeiro de 2020.

- 2ª Voz: relato de memória de Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

Antes de iniciar recomendo que retorne ao Mundo Valéria e perceba o protagonismo da questão que será desenvolvida abaixo:

Um sonho de progresso

As indústrias são estruturas que fazem parte da paisagem de Valéria de um forma muito integrada e natural no imaginário da população, tanto, que certa vez afirmei com certeza a uma professora que “Valéria é sim, completamente auto-produzida”, ou seja, tudo que foi construído aqui veio de uma ação desassociada de alguma intervenção pública ou privada. Esta foi uma total falta de percepção do meu espaço, tudo por aqui está marcadamente associado a uma ação externa, seja ela pública, privada ou mesmo popular, estas de forma conjunta tornam visível um bairro cheio de contrastes. Esse tal progresso é mesmo complexo de se perceber.

Para falar sobre isso parto da história dos meus avôs, dois homens que pouco conheço de fato, migrantes do interior da Bahia, pretos, que tem suas histórias atravessadas pelo mesmo território (aqui), mas nunca se conheceram. Vô Antônio (ou Birro como era conhecido, este da fotografia que está na colagem), meu avô paterno, foi um dos primeiros empregados da fábrica da Parmalat, chamam ele de “fundador da Parmalat” (que foi inaugurada na década de 1960, ainda pertencente ao grupo Alimba), a partir dele muitas conexões de trabalho foram possíveis, e é isto que eu sei sobre meu avô, sobre seu trabalho. Vô Raimundo (meu avô paterno) trouxe toda a família na década de 1980, quando já muitas indústrias, transportadoras e pedreiras funcionavam a todo vapor no bairro. Foi possível conseguir trabalho através de uma conexão familiar nas Pedreiras Valéria, posteriormente sempre teve empregos associados ao transporte. Inicialmente moravam em uma casa bem pequena e alugada, no Largo de Valéria, mas logo conseguiram comprar um terreno na Rua Paulo Gonçalves, que recebe o nome do próprio rendeiro responsável pelas vendas dos lotes, se estabeleceram e vivem por lá até hoje, em um conjunto de casas da família (uma laje para cada). Foi nesta rua que cresci, em uma casinha um pouco mais abaixo. Estas são as histórias próximas a mim, de minha própria família, ela se repete em muitas outras famílias daqui, não é mesmo? As oportunidades de trabalho e a facilidade de acesso ao bairro pelos migrantes do interior que buscavam no percurso para a “cidade” uma perspectiva, tornam Valéria (e também Palestina), território concreto do tal “sonho do progresso”.

Uma fala de Dona Neném da Nova Brasília

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Fotografia retirada do álbum de minha família paterna. 

Minha família está em frente ao terreno na Rua Paulo Gonçalves da Silva, onde construíram três casas ao longo de suas vidas por aqui. Atualmente na casa térrea moram minha avó e avô paternos, na casa em 1º subsolo (onde hoje fica uma Travessa) moram minha tia, filha e filho, e a casa do subsolo 2, a primeira que foi construída, está alugada.

Esse processo começa de fora para dentro na década de 1950, momento em que todo o país inicia uma fase focada no desenvolvimento industrial a fim de conseguir criar uma integração econômica em todo território nacional (SILVA, 1996). Salvador caminha junto ao país, muito conectada ao início da exploração de petróleo no Recôncavo Baiano, estimulando o crescimento econômico, populacional e urbano da cidade e de sua região metropolitana (CARVALHO et al, 2007). Assim, é em 1959 que o DERBA (Departamento de Estrada e de Rodagem da Bahia) chega ao território em área adjacente à estrada da Fazenda do Rio dos Macacos, atual BA-528, e à Reserva do Rio do Cobre, onde instala-se sua sede principal, para dar maior apoio na estruturação dos traçados da BR-324 (antiga estrada Bahia-Feira) e da BA-528 que marcam os limites do bairro. Ou seja, instala-se este complexo de apoio quando as obras de consolidação das vias se aproximam da capital, pois a BR-324 já estava em obra a algum tempo desde as cidades anteriores. Nesta época Valéria ainda pertencia ao município de Lauro de Freitas. Muitos moradores trabalharam desde a instalação da sede, contratados para desmatar toda área verde nativa dali (neste mesmo local ainda sobrevive uma lagoa, conhecida como Lagoa do DER-BA), além de trabalharem na construção das estruturas e nos serviços básicos conectados a este processo. Na área foram construídos: alojamentos para funcionários - o conjunto habitacional do DERBA -, casas maiores para lideranças de alto escalão (como engenheiros e administradores(as) e diretores(as)), uma escola para filhas e filhos de funcionários(as), posto médico, posto policial, farmácia, refeitórios, entre demais estruturas necessárias e direcionadas às demandas de funcionários(as) afirmam relatos, conformando esta área como uma centralidade no bairro. Pouco está historicizado sobre os feitos do DERBA no processo de estruturação das estradas na região metropolitana de Salvador, mesmo com todo o protagonismo deste departamento, o que sei vem através das memórias de moradoras e moradores que reconhecem seu protagonismo, já que este gerou muitos empregos diretos e indiretos ou mesmo por ter trazido infra-estruturas e serviços que ainda não existiam por aqui. Ao longo do tempo, com a mudança das lideranças, os serviços exclusivos aos associados e associadas, tornaram-se abertos à população. Ainda que a territorialidade criada por este complexo inicialmente estivesse desconectada da realidade comum, o DERBA foi perdendo suas fronteiras institucionais à medida que o trabalho necessário com as estradas foi concretizado, e desta forma tornou-se uma região de Valéria, que de certo tem aspectos sociais contrastantes dos demais espaços, mas isso apenas evidencia de que modo a urbanidade de Valéria foi sendo formada.

Os investimentos no setor industrial são marcados pelo desenvolvimento do Centro Industrial de Aratu (CIA) fronteiriço à Valéria, e do Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC) na década de 1960, devido aos incentivos criados pela SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) (VASCONCELOS apud BRITO, 2013). O plano diretor urbano-industrial do CIA em 1966 (uma série de normativas que visa orientar a gestão e a organização do espaço urbano e, neste caso também, industrial) envolvia além do setor industrial local (localizado entre Valéria e o município de Simões Filho), o desenvolvimento de áreas em outros municípios, como Salvador e Lauro de Freitas, devido a sua escala urbano-regional, a fim de desenvolver setores de comércio, recreação, redes hospitalares e eixos culturais (PLANO DIRETOR DA ÁREA DE VALÉRIA, 1983). Desta forma, na década de 1970 ocorre um intenso aumento populacional na área do Miolo de Salvador, processo refletido em Valéria, que por conter diversas áreas de vazios potenciais ao uso e por sua localização geográfica às margens do município de Simões FIlho, torna-se sede de muitas fábricas e transportadoras, e recebe um grande contingente populacional a procura destas novas oportunidades (BRITO, 2013). É neste período que instala-se a fábrica de laticínios da Alimba (posteriormente foi comprada pela Parmalat) que assim como o DERBA torna-se um vetor de empregabilidade e de investimentos infra-estruturais, além dela, instala-se aqui a fábrica da Metalonita (posteriormente Ortobom), a Transportadora Transantana e a Della Voupe, grandes empreendimentos que são marcos determinantes no território, conformando novas ocupações, novas sociabilidades e novas perspectivas ao bairro. Com todos estes empreendimentos de alto valor econômico, Valéria torna-se uma área de grande arrecadação tributária, sendo desta forma, incorporado como bairro de Salvador em 1969 (JORNAL DA BAHIA, 1973). 

Uma lembrança engraçada:

Eu tenho a memória de em casa, quando criança, guardávamos as grandes caixas de leite da Alimba debaixo da cama. Quando perguntei a meu pai, para que fazíamos isso,  se tinha alguma questão de conservar o leite ou algo nesse sentido, ela sorriu muito e disse que não era nada demais, simplesmente não tinha espaço para tanto leite no armário da cozinha.

Fotografia da antiga fábrica da Alimba, na rua da Matriz, próxima à saída da BR-324.

Fonte: Valéria News (página do facebook)

Em 1973, nosso bairro que a pouco tempo acreditei estar completamente à margem das ações do poder público, fez parte do processo de planejamento urbanístico do Distrito Industrial Urbano de Salvador (DINURB), zona de extrema relevância no processo de desenvolvimento e planejamento da Região Metropolitana de Salvador. Episódio relevante de se conhecer, ainda que boa parte das ideias contidas nestes tantos planos não saiam do papel, é um ponto de reflexão sobre quais são e até onde vai o desenvolvimento destes interesses públicos e privados nos territórios-margem das cidades. 

Somente após todo este adensamento e a instalação das grandes fábricas, que Valéria passa a receber água encanada e energia elétrica em suas ruas principais e adjacências (Rua da Matriz, Rua Boca da Mata e Rua Nova Brasília), além disso constrói-se o Viaduto de Valéria, fato que possibilitou a entrada de ônibus dentro do bairro, me conta o líder comunitário Jorge Bastos, relatando ainda que estas estruturas chegaram após bastante reivindicações, bem como diversas outras conquistas. Apesar dos projetos de melhoria estarem começando a se multiplicar no espaço urbano, a discrepância entre o imaginário moderno de “progresso”, materializado nas grandes indústrias que ocupavam o espaço, e as lentas melhorias básicas em um bairro tão valoroso ao desenvolvimento da cidade, trazia um sentimento óbvio de inconformidade da população, que tinha clareza da potência do território, mas não via isso ser concretizado em investimentos equivalentes (JORNAL DA BAHIA, 1973), e necessários para comportar toda a densidade que este “progresso” trouxe. Chegando nestas questões, compreendo sobre como todo o discurso de progresso replicado nas décadas anteriores, tornou-se um discurso das ausências, já que os problemas básicos enfrentados desde o início de seu adensamento não foram superados, na verdade, com a intensificação do “progresso”, estes problemas foram apenas multiplicados.

Com o passar do tempo, a população se reinventa, outras ações públicas ocorrem, e mesmo os grandes empreendimentos que protagonizaram aquela fase desenvolvimentista fecham, novos chegam, novas questões surgem, novas promessas aparecem, novos sonhos… É um estado constante de disputa. Valéria ainda é foco de muita arrecadação tributária, foco de muitos contrastes e foco de muita adaptação de quem está desde àquela época buscando não regredir.

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JORNAL DA BAHIA, 17 06 1973 MANCHETE.png

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REFERÊNCIAS

Colagem

Fotografia de meu avô materno Antônio. Fonte: acervo pessoal.

Fotografia da BR-324, sem data encontrada. Fonte: acervo do IBGE.

Textos

BRITO, Gilma. Um bairro na cidade corporativa: um estudo sobre o bairro Valéria. Salvador (Bahia), 2013. Dissertação (mestrado em geografia). Instituto de Geociências. Universidade Federal da Bahia, Salvador.

CARVALHO, Inaiá Maria Moreira. PEREIRA, Gilberto Corso. DINÂMICA METROPOLITANA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL Caderno CRH, vol. 20, núm. 50, maio-agosto, 2007, pp. 261-279

COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO METROPOLITANA DE SALVADOR. Plano diretor da Área de Valéria. Salvador, BA: [s.n.], 1983. 176 p

SILVA, Sylvio Bandeira de Mello e. Reavaliando os principais problemas de Salvador. Cadernos de Geociências, n. 5, 1996. 

__.Valéria, um sonho apenas de progresso. Jornal da Bahia, Salvador, 17 de jun. 1973. Cidade, p.1.

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