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ancora: para salvador

no curso das memórias

no curso das memórias

COLAGEM 2 DE JULHO 2.png

no curso das memórias

para Salvador, acesse retorno

Colagem: autoral

Áudio: relato de memória de Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

MAPA - FRAG SALVADOR PASSA.png

Esta história é narrada por Dona Neném, mas eu já havia a escutado pela minha avó, que escutou de um tio dela. Ela ressoa em meu imaginário quase como uma lenda desde criança, e eu acreditava que todo mundo já havia a escutado. Pois bem, eu estava enganada. Não sei se eu presto muita atenção nas memórias que ouço daqui, ou se realmente ela é pouco contada, mas descobri que amigas e amigos (de minha idade) nunca tinham ouvido falar disso. Como não? Valéria fez parte do intenso processo de libertação colonial, houveram batalhas cerradas no chão daqui. As matas daqui guardam esta memória, a cidade guarda esta história, a memória revela esta história. Mas o que a história da cidade revela da história daqui?

Valéria é meu lugar!

"Falamos a partir da sobreposição de três tempos:

o passado narrado nas histórias

daqui, o presente sendo atravessado por essas narrativas, lembradas pelas vozes do futuro."

Vídeo: autoral. Produzido a partir de um percurso de moto pelas ruas principais do território.

Assessoria Técnica: Tássio Sarrosí. Filmagem em: 11 de setembro de 2020 e 16 de setembro de 2020.

Áudio: relato de memória de Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

Música: canção produzida pelo Centro Municipal de Educação Infantil João Paulo I. Cedida pelo líder comunitário Jorge Bastos.

Valéria é um bairro localizado nas margens da cidade – Valéria é o último ou o primeiro bairro de Salvador? –, delimitado pelas rodovias BR-324 e BA-528, e pela fronteira com o município de Simões Filho. Possui uma área total com cerca de 12,17Km² segundo Gilma Brito (2010), geógrafa nascida e criada aqui, e única produtora (até então) de um estudo teórico-acadêmico sobre o bairro. A total de população residente é divergente em diversas fontes oficiais, o censo do IBGE de 2010 aponta em torno de 26.000 habitantes, já uma reportagem do Jornal a Tarde de 2008 traz um número muito maior, 86.000 habitantes (sem fonte específica), mas conversando com Jorge Bastos, antigo líder comunitário daqui, ele aponta uma população de 125.000 habitantes em Valéria neste ano, mas também não revela de onde vem este número. Ou seja, é possível que esta tenha quase duplicado ou mesmo sextuplicado em 10 anos? Do mesmo modo, a conformação territorial antes da urbanização é divergente, Brito (2010) aponta que três fazendas formaram o bairro, Schindller, Temporal e Omaque, originando parcelamentos e invasões, já o Plano Diretor da Área Valéria (1986) aponta que o território foi originário por fazendas e chácaras (bem como Jorge Bastos aponta), são elas: as fazendas Meireles, Valéria e Granjas Rurais Presidente Vargas, e as chácaras Boa Sorte e Jardim Lobato, e  Parque S. S. Shindler. De todo modo, estas originaram parcelamentos de terra negociados por Rendeiros, sujeitos muito vivos nas memórias da população, responsáveis pelos primeiros processos de ocupação de terra daqui (segundo relatos de famílias bem antigas). Do mesmo modo, os donos das fazendas eram sujeitos muito presentes na convivência cotidiana, mas isto se perde quando estes de fato deixam o bairro, em intensos processos de ocupação, resultado de políticas urbanas da cidade, as quais descreverei a seguir. Ainda é importante falar que, assim como a cidade, as terras daqui carregam muitas águas, segundo o livro O Caminho das Águas em Salvador (2010), dentro do território coexistem as bacias hidrográficas Rio do Cobre, do Rio Ipitanga e do Rio Jaguaribe, estas águas estão presentes ativamente nas memórias daqui, mesmo que elas estejam sendo encobertas cada dia mais ao longo do tempo.

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¹Para compreender o que é este plano, olhe o fragmento “Um sonho de Progresso”.

Na década de 1930, Salvador é palco de diversas intervenções lidas enquanto um “urbanismo demolidor”², postura que visava destruir a imagem de cidade antiga e atribui-lhe características modernas, muitas construções antigas derrubadas em nome do progresso (Petti, 2011). Calcadas nestes ideais modernizantes, e também sanitaristas, a partir destas visões que começam a ocorrer as reformas sanitaristas no centro antigo de Salvador, espaço que concentrava boa parte da população nesta época. Além disso, a crise habitacional vivenciada por todas as classes nesta época, leva a um ato de “resguarda” dos proprietários de terra, culminando na falta de oferta de áreas habitáveis que contribui para massivos de atos de invasão² de terras públicas, particulares ou de propriedade duvidosa, processos altamente reprimidos pelo governo, que combatia estas ocupações realocando-as para áreas mais afastadas da cidade, responsáveis por inúmeros movimentos populacionais centro-margem (CARVALHO et al, 2007). Inexiste nas visões que orientavam estas ações de urbanização sanitarista, olhares globais sobre as dinâmicas da cidade e do seu espaço construído, produzindo projetos localizados, por vezes direcionadas às áreas centrais como um “urbanismo demolidor”, apenas focalizando a produção de redes de infraestrutura básica muito conectadas à estética viária e aos ideais do urbanismo moderno (SAMPAIO apud BRITO, 2013).

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²Na medida em que a cidade urbanizada não oferecia espaço habitacional compatível com a sua renda (ou melhor, com a carência), começaram a se multiplicar as ocupações coletivas por “invasão”, como passariam a ser designadas as áreas de habitação popular que se formaram ou cresceram por “ocupação espontânea” direta, e, sobretudo, de forma coletiva, iniciadas por famílias sem recursos e sem moradia, à revelia do proprietário fundiário, portanto, sem consentimento, intermediação ou comercialização”. (SOUZZA, apud CARVALHO et al, 2007, p.264)

Nesta época, apenas nota-se adensamentos populacionais nestas regiões da da cidade (Cidade Baixa, Centro Antigo e Barra)

Área ocupada de Salvador em 1940.

Fonte: PDDU Salvador 2000/PLANDURB.

CADERNO DA CIDADE -Evolução Urbana de Sa

Por aqui são reconhecidas as primeiras ocupações mais intensas

É notório o intenso adensamento nas regiões ligadas ao mar, e naquelas que já viam em processo de ocupação mais notável

Por aqui as regiões de Boca da Mata, Nova Brasília e Derba recebem o maior contingente populacional, e é perceptível que as áreas não ocupadas são zonas de mata (apesar de estas já apresentarem alguns espaços ocupados, como sabemos por aqui)

Área ocupada de Salvador em 1976.

Fonte: PDDU Salvador 2000/PLANDURB.

Área ocupada de Salvador em 2000.

Fonte: PDDU Salvador 2000/PLANDURB.

Na década de 1950 a cidade se movimenta junto com a nação em uma fase desenvolvimentista industrial objetivando a integração econômica nacional (SILVA apud BRITO, 2013), fazendo com que houvesse um acelerado crescimento urbano em Salvador e iniciando um processo de degradação das bases rurais de Valéria. Este é um período muito relevante para definir a urbanidade desde esta época até o momento presente no bairro, deste modo irei explorá-la e descrevê-la no fragmento “Um sonho de Progresso”. É nesta fase que, segundo Brito (2013), iniciam-se os primeiros parcelamentos de solo no bairro, porém ao cruzar interlocuções com moradoras antigas noto que estas afirmam já haverem porções de terra ocupadas, tanto a partir dos parcelamentos (como é o caso da família de meu bisavô e bisavó, que poderiam ser descendentes de empregadas(os)/escravas(os) das próprias fazendas) e até mesmo de algumas invasões que já ocorriam na região de Nova Brasília, conhecida na época como Balança. 

GRÁFICO RAÇA.png

Percentual da população da região da Prefeitura-Bairro de Valéria por cor/raça. Fonte: Painel do Informs (2016).

É importante trazer à tona estas ocupações remanescentes de “trabalhadoras e trabalhadores” das fazendas, possivelmente escravas e escravos daqui, ou daquelas(es) que encontraram nessas terras uma possibilidade de sobreviver, tendo em vista suas características ambientais. Esta ancestralidade, um princípio organizador, uma lógica, um conteúdo de metafísica vinda do universo negro, segundo Oliveira (2007), é estruturador da existência individual e do sistema de relações que organizam as comunidades negras, produzindo um modo de vive particular (Ramos, 2013). A noção de “bairro negro” é trazido por Ramos (2013) a partir de critérios históricos, culturais, políticos e econômicos, destacando nestes a presença negra no território, as quais tiveram uma forte herança dos saberes de suas/seus moradoras(es) fundadoras(es) na criação de estratégias de solidariedade e de relações sociais.

A década de 1960 é um marco na expansão urbana de Salvador e na consolidação de Valéria enquanto bairro relevante nas dinâmicas socioespaciais e econômicas do município. Após consolidação do traçado da BR-324 e da BA-528, conforma-se o traçado atual do bairro, obras que junto à construção da Avenida Paralela, das Avenidas de Vale e da Avenida Octávio Mangabeira, definem o miolo e a orla atlântica como os novos eixos de expansão da cidade (PLANO DIRETOR DA ÁREA DE VALÉRIA, 1983). Pode-se compreender que, para além de atrativo econômico, as novas dinâmicas territoriais possibilitam novas ocupações e invasões nas áreas adjacentes àquelas que recebem investimentos, promovendo exponencialmente o êxodo rural e local para espaços como Valéria e Palestina. O que me faz lembrar que, assim como minha família paterna, muitas famílias de trabalhadores vindos do interior, guiados pelas necessidades da vida, colaboram na perpetuação de uma ancestralidade rural, já característica daqui, associada a esta sociabilidade de interior. “Aqui parece mais o interior de Salvador”. “Que dia você vai na cidade?”. “Aqui é tão longe, ainda é Salvador?”. Os processos reproduzidos nesta margem são reverberações das políticas da cidade, como aqui não seria a própria cidade?

MAPA TIPO DE OCUPAÇÃO.png

Totalmente popular inferior.

Ocupação com tipologia social agrícola e popular inferior

Porque se criar leituras tão genéricas dos espaços? Em plenas década de 1990 e 2000 será mesmo que esta leitura condiz com a realidade de nosso bairro? Quais são as questões por trás dessas classificações oficiais homogeneizantes? E se de fato querem que seja genérico, para que isto serve?

Mapeamento da tipologia socioespacial de Salvador em 1991 e 2000 (respectivamente) através de dados do IBGE.

Fonte: CARVALHO et al (2012)

Bom, como é explícito, este é um bairro na cidade mais negra fora do continente africano, esta negritude marca uma cultura, que não aparece enquanto pauta relevante, a não ser pelo viés da subalternidade. Ao passo que estas são lidas pelo poder hegemônico (herança colonizadora) enquanto ignorantes a sua própria realidade, ou seja, realidades subalternas incapazes de tecer reflexões sobre a própria existência, afirma a intelectual Grada Kilomba (1968). As práticas racistas de dominação buscam a tempos calar os modos de existir das populações pretas, ao passo que, compreendem que estas vozes ao serem ouvidas são capazes de criar identificação/identidade (Kilomba, 1968). Descolonizar as narrativas que reproduzem as histórias da cidade é um ato político de desconstrução dos apagamentos e omissões dos “lugares de memória” lidos enquanto oficiais. “Do quilombo à favela, das irmandades aos terreiros, das feiras aos mercados, das festas de rua aos paredões, das senzalas aos quartinhos de empregada, do mocambo às grandes torres envidraçadas: não há um fora ou um espaço isento de racialização nas cidades brasileiras” (LEANDRO, 2019).

Colocar as memórias enquanto protagonistas nesta narrativa que constrói outras narrativas sobre a cidade, não é de modo algum criar uma dualidade entre elas e a história oficial, estas não são os avesso uma da outra. A memória oral também tem seus desvios, seus preconceitos, sua autenticidade, cabe-nos interpretar tanto a lembrança quanto o esquecimento, omissões ou trechos desviados de narrativa que demonstram o quanto os episódios foram apreendidos subjetivamente por quem os conta, produzindo mais uma camada de reflexão (BOSI, 2003). É notável ao ouvir estas memórias daqui, um ato de reivindicação de olhares que leiam Valéria enquanto território potente na cidade, leitura que crio ao perceber que a nostalgia tão marcante nestas falas, rememoram os gestos e as relações que são sinônimo de cooperação em um bairro que é marcado pelas manchetes de esquecimento, precariedades e violência, olhares colonizados que acorrentam possibilidades de criação de enraizamento. A memória emerge do presente e se enraíza na concretude, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto afirma a historiadora Ecléa Bosi (1979).

Parafraseando o guardião de memórias do Subúrbio Ferroviário José Eduardo (2020): “Valéria não é uma ilha. O bairro está localizado nas margens da cidade de Salvador e como tal reivindica para esse território novos modos de olhar para ela e as pessoas que nela habitam. Assim este site também não é uma ilha, ele parte de um lugar subalterno para falar sobre ele e para ele, este é um espaço de memória à margem, que cruza as vozes produtoras de identidades, e como elas se relacionam sobre o que a História conta daqui.

É verdade esse bilhete!

Conferi pelo mapa topográfico de Salvador, e confirmei, Valéria de fato possui o ponto mais alto da cidade. O ponto específico fica na Rua Boca da Mata, perto da fábrica de biscoitos. Isso explica bem os fortes ventos frios a noite, e a facilidade de se escutar os ruídos do bairro nesta localidade.

O que isso importa? Nada específico, mas sempre ouço falar, popularmente, que o lugar mais alto de Salvador é Brotas. E não é. Será que é por isso que por aqui sempre chove antes de chover na "cidade"...?

Fonte: Instagram @valerianews

REFERÊNCIAS

 

Colagem: 

Fotografias de moradoras, moradores e sujeitos relevantes para a história do bairro. Fonte: acervo pessoal.

Fotografia do território, antiga Fazenda Valéria desmatada às margens da BR-324, local onde passava um rio. Fonte: acervo pessoal.

Texto: 

BRITO, Gilma. Um bairro na cidade corporativa: um estudo sobre o bairro Valéria. Salvador (Bahia), 2013. Dissertação (mestrado em geografia). Instituto de Geociências. Universidade Federal da Bahia, Salvador.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. [S.l: s.n.], 2003.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos. 2. ed., São Paulo: T.A. Queiroz, 1994.

COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO METROPOLITANA DE SALVADOR. Plano diretor da Área de Valéria. Salvador, BA: [s.n.], 1983. 176 p.

DE CARVALHO, Inaiá Maia Moreira. PEREIRA, Gilberto Corso (organização). Como anda Salvador e sua Região Metropolitana. Salvador: Edufba, 2008. 228 p.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. 244p

LEANDRO, Gabriela. Direito à cidade e questões raciais. Coletiva, junho de 2019. Disponível em: https://www.coletiva.org/direito-a-cidade-e-questoes-raciais. Acesso em: mar. 2020.

OLIVEIRA, Eduardo. A Ancestralidade na Encruzilhada. Curitiba: Ed. Gráfica Popular, 2007 

PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia : difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador) / Eloísa Petti Pinheiro. – 2 ed. – Salvador : EDUFBA, 2011. 366 p. il. 

RAMOS, Maria Estela Rocha. Bairros negros: Uma lacuna nos estudos urbanísticos - Um estudo empírico-conceitual no bairro do Engenho Velho da Federação, Salvador (Bahia). Tese (Doutorado), Versão Provisória - Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Salvador, 2013, 283 f.

SANTOS, Maria E. et al. O Caminho das Águas em Salvador. Salvador: Ciags/UFBA, 2010. 

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