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Âncora 1 trajetos

o que sai e o que entra aqui

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Colagem: autoral

Áudios:

Voz 1: relatos de memória da minha avó Avani (materna), 66 anos, moradora nascida, criada  e professora de escolas em Valéria.  Gravado em: 12 de agosto de 2020.

Vozes 2:  relato de memória de Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954 e de sua irmã mais nova Dijó. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

relato de memória de Dona Lurdes, moradora de Palestina desde 1969.  Gravado em: 04 de setembro de 2020.

trajetos, margens e centralidades

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Muitos percursos atravessam aqui. Quando eu imagino como aqui começou a virar cidade, penso naquelas vilas à beira das rodovias que sempre são ponto de parada para viajantes, por lá tudo parece ordinário, mas os atravessamentos criam uma complexidade tão grande naquele espaço que esse pode até parecer passável, mas o tempo revela o que essas paradas acumulam. 

As primeiras memórias que me fazem pensar sobre isso, são histórias que minha avó contava sobre os bois que iam parar nas fontes quando todas estavam por lá lavando suas roupas, quem não tinha medo continuava, já minha Bisa Lili corria para bem longe deles, e só saia dali quando alguém conseguisse desempacá-los, e quando algum amuava de vez, enchia o prato de muita família que precisava. Os vaqueiros tinham muito trabalho, as boiadas eram enormes, percorriam a estrada que vinha de Feira de Santana, subiam pela Rua da Matriz, até a Rua Nova Brasília (A Balança) e depois seguiam para a Ribeira. Segundo reportagem do Jornal da Bahia (1973) essa estrada fazia parte do primeira traçado da rodovia Bahia-Feira, data o ano 1919. Seria essa uma parte da famosa Estrada das Boiadas de Pirajá, aquela que conectava o sertão até a capital? As memórias só afirmam essa minha desconfiança. Mais que bois, por essa estrada passaram cavalos, mulatos e capoeiras no dia 2 de julho de 1823, é o que contam as velhas daqui (olha lá no Fragmento "Para Salvador, acesse retorno"). Bom, de certo, no jornal contam que ela simbolizou muita alegria para moradoras e moradores por aqui, diziam que simbolizava o início do desenvolvimento de Valéria e de conexão com outros espaços, já que tudo era tão isolado. Nessa época, nossa localidade ainda pertencia ao município de Lauro de Freitas. Aqui era margem de estrada e era referência central nesses trajetos que produziam outras margens e outras centralidades no estado.

Imagino que os percursos de fora para dentro (aqui) começaram com essa estrada e a passagem de algumas boiadas (às vezes paradas), mas os percursos mais antigos de dentro para fora, que ouvi contarem, acontecia pela estrada da antiga Fazenda dos Macacos que chegava até Periperi (Plano Diretor de Valéria, 1983). Por ali caminhava-se até a estação de trem mais próxima, percorrendo toda a linha férrea do Subúrbio até a Calçada, dali novamente caminhava-se até chegar à Feira de São Joaquim onde poderiam ser comprados alimentos mais caros que não se achava por aqui (como carne e  peixe) para passar o mês. Por aqui, era comum se encontrar vegetais, frutas, grãos, ervas e farinha que as pessoas plantavam e produziam em seus quintais. Não é uma generalização, mas pelo que ouvi, quem mais fazia esse percurso eram as mulheres, responsáveis por manter a casa funcionando, os homens ou trabalhavam fora ou plantava a roça por aqui mesmo. As idas à feira a pé e de trem eram muito comuns até a década de 1960, foi nessa época que reformaram o traçado da estradinha de Periperi, e dela fizeram a rodovia BA-528. Já o trecho da estrada Bahia-Feira que passava por aqui não se estendeu, ficou por aqui mesmo, e virou rua. Esta estrada foi deslocada e se consolidou, formando o traçado da BR-324, também na década de 1960. 

Nesse processo, a região de Valéria se desconecta da região conhecida como Beco de Bida, nomeada com o apelido de um dos donos de uma das fazendas que compunham este território, por lá plantava-se muito abacaxi e criavam-se porcos, que eram consumidos pela população de ambos territórios. Minha avó conta que costumava ir com sua mãe na fazenda visitar uma tia e por lá ficava vislumbrando os poucos automóveis que passavam pela estrada, à espera do pôr-do-sol. Atualmente conhecemos este local como o Bairro de Palestina - para saber mais sobre ele confira o Fragmento “Palestina é resistência e Valéria também” -. Ambas as estradas, a BA-528  e a BR-324 determinam os limites de Valéria até hoje. Depois da estruturação do traçado de ambas, as entradas, saídas e permanências só se intensificaram por aqui, fazendo com que Valéria e Palestina fossem focos centrais de migração de habitantes de cidades do interior da Bahia e de outros estados próximos, gente em busca de oportunidades de trabalho ou moradia. 

Também é a partir desse processo, que os ônibus começam a fazer mais parte do cotidiano da população As moradoras e moradores me contam que até a década de 1970 mais ou menos, as “lotações” (como denominavam-se alguns ônibus naquela época) vinham do CIA (Simões FIlho) pela BR-324, e caminhando até o ponto de ônibus da rodovia conseguia-se chegar à outras regiões da cidade mais rapidamente, bem como retornar. Com a construção do viaduto em 1975, segundo o líder comunitário Jorge Bastos, o acesso dos ônibus que vinham do Centro iniciou, isso ocorreu após a incorporação de Valéria como bairro de Salvador em 1969 (anteriormente pertencia à Lauro de Freitas). Eles vinham lá do Terminal da França no Comércio e demoravam bastante para chegar, se o trabalho fosse para o lado de lá e se o ônibus quebrasse ou atrasasse… Não tinha muito jeito de chegar. Mas, isso pouco mudou na verdade. Minha mãe e meu pai, que a partir de certa idade precisaram estudar em escolas nestas outras regiões da cidade, já que por aqui as escolas só iam até o ensino fundamental, sempre me contaram que “no tempo deles era muito mais difícil” estudar fora de Valéria, eles tiveram que aprender a se virar na agonia da cidade desde bem cedo. Iam todas(os) em grupos e voltavam em grupos também, não podia ser diferente, minha mãe ia com suas primas e colegas, já meu pai ia com seu irmão mais velho e amigos de rua. Ele me conta que certa vez seu irmão saiu apressado para subir no ônibus no retorno para casa, e sem atenção meu pai acabou não entrando e ficando por lá sozinho até muito tarde esperando o próximo ônibus que passasse (ele tinha 12 anos). Já minha mãe, fala muito sobre em certa época já não conseguir mais companhias para fazer esses percursos, precisando aprender a ser muito independente desde então (ela também tinha 12 anos). Os percursos pela/para “a cidade” definem muito nossos caminhos por aqui.

Grande felicidade ocorreu com a construção da Estação da Lapa na década de 1980, daqui logo trataram de inaugurar uma linha direta para lá, partindo sempre lotada (isso também não mudou tanto). A estação parecia uma extensão do bairro, lá todo mundo se encontrava para se espalhar pela cidade ou para voltar para casa. Questiono-me sobre as políticas de mobilidade sempre priorizarem estas extensas conexões pela cidade, focando em facilitar as migrações diárias a estes territórios lidos como “centrais”. O centro em relação a que?

As linhas de ônibus que instalaram-se inicialmente por aqui faziam longas viagens esforçando-se para conectar Valéria ao “centro” da cidade, foco da atenção dos grandes investimentos de infraestrutura urbana, grandes comércios varejistas, das grandes instituições de ensino, das grandes feiras. Ainda assim, estas não excluíram os percursos a pé que produziam conexões necessárias para a simplificar a manutenção da vida cotidiana, complexa demais para se amparar (completamente) em grandes trajetos. A relação do bairro de Palestina com Valéria nunca foi sobre rodas, por exemplo, as pessoas vinham muito mais para cá do que iam para lá já que aqui o comércio começou a se desenvolver mais cedo, mas muitas pessoas trabalhavam nas escolas ou iam visitar parentes que moravam do lado de lá, percurso que se mantém. O mesmo quando pensamos em lazer, era muito comum caminhar até as cachoeiras de São Bartolomeu e ir para as praias do Subúrbio, trajetos que não possuíam e ainda não possuem conexão através de transporte público direto (entre bairros). Poderia ainda citar a conexão com a região das Cajazeiras, que, apesar de ter um processo de adensamento e desenvolvimento urbano em período próximo ao de Valéria, tornou-se uma centralidade muito maior ao longo do tempo para esta região nas margens da cidade.

É simplificar demais tentar compreender as dinâmicas da cidade sempre colocando enquanto argumento norteador estas distinções entre centro-margem. Elas, em suma, podem dar conta de entender as desigualdades sociais, já que estes extremos (centro-margem) são óbvios em cada um deles, porém invisibilizam leituras que não criam hierarquizações de espaço melhores ou piores, mas reconhecem diferenças e investigam potências (Serpa, 2002). Isto fica claro, ao entender que estas relações entre bairros à margem produzem “outras” centralidades por vezes desligitimizadas pelas políticas urbanas. O bairro de Valéria pode ser lido enquanto central tendo em vista os processos surgidos a partir dos trajetos que o atravessaram durante a estruturação dos traçados das rodovias,  estruturantes da urbanidade de Salvador. Ao mesmo tempo que o Subúrbio e Cajazeiras podem ser lidos enquanto centralidades em relação ao nosso bairro, tendo em vista os trajetos percorridos desde as(os) primeiras(os) moradoras(es) afim de acessar modos do mantimento da vida, Valéria exerce esta relação de centralidade com bairro da Palestina, e estas características podem se transformar ciclicamente ao longo do tempo, por conta de um processo histórico ou político, por exemplo. Do mesmo modo que as relações sociais entre habitantes definem cotidianamente os modos de vida possíveis daqui, as relações inter-territoriais são estruturantes na produção urbana micro e macro da cidade.

Ao deslocar este olhar que alimenta o conflito (centro X margem), é possível compreender que “as margens não são inertes” à ação do estado  e ao mesmo tempo estas não estão apartadas deste poder. E aqui, estas margens não são simplesmente caracterizadas sob o viés da ilegalidade ou da exclusão mas sim um espaço que está em constante experimentação das ferramentas de governabilidade e de legislação do Estado, ao mesmo tempo em que a população está constantemente produzindo modos de vida possíveis de ascender sobre estas ferramentas afim de assegurar sua sobrevivência (Das e Poole, 2004). Ou seja, estes não são espaços fora do Estado, estar na margem é fazer parte do todo, mas fora do corpo principal” como afirma Hooks (1983), um lugar de focar olhar nas experimentações que emergem cotidianamente, qualificando nosso espaço enquanto marginal ao entender que é a partir dela surgem outros mundos, produzido a partir desses trajetos cruzados.

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REFERÊNCIAS

Texto

HOOKS, bell. Choosing the margins as a space of radical openness. Framework: The Journal of Cinema and Media, no. 36 (1989), pp. 15-23.

COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO METROPOLITANA DE SALVADOR. Plano diretor da Área de Valéria. Salvador, BA: [s.n.], 1983. 176 p.

DAS, V.; POOLE, D. (Ed.). Anthropology in the margins of the state. New Mexico: School of American Research, 2004.

SERPA, A. Margens de Salvador: A Produção do Espaço Periférico Metropolitano. In: LIMA, Paulo Costa; LUZ, Ana Maria de Carvalho; CARVALHO, Manoel José de; SERRA, Ordep (Orgs.). Quem Faz Salvador? Salvador-Bahia, 2002, p. 295-303.

__.Valéria, um sonho apenas de progresso. Jornal da Bahia, Salvador, 17 de jun. 1973. Cidade, p.1.

Canção "A estrada das Boiadas" de Tonho Matéria (2020)

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