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Âncora: mulheres

As fontes e os adensamentos

mulheres, memórias e espaço

Colagem: autoral

Áudio: relato de memória de Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

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A noite não adormece nos olhos das mulheres 

 Conceição Evaristo

 

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

a lua fêmea, semelhante nossa,

em vigília atenta vigia

a nossa memória.

 

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

há mais olhos que sono

onde lágrimas suspensas

virgulam o lapso

de nossas molhadas lembranças.

 

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

vaginas abertas

retêm e expulsam a vida donde

ainás, nzigas, ngambeles

e outras meninas luas

afastam delas e de nós

os ossos cálices lágrimas.

 

A noite não adormecerá

jamais nos olhos das fêmeas

pois do nosso sangue-mulher

de nosso líquido lembradiço

em cada gota jorra

um fio invisível e tônico

pacientemente cose e rede

de nossa milenar resistência.

As conversas ao redor da mesa após refeições eram um hábito de família, esse espaço sempre foi dominado pelas mulheres de minha vida, na verdade é difícil lembrar de espaços em que cresci que não fossem centralizados nas matriarcas, assim é difícil não tê-las enquanto figuras centrais na perpetuação da memória, da família e daqui. Escutar as histórias de minha mãe, tias, avós e bisavós é fascinante, cada lembrança, encenação, conto, choro e sorriso me fazem compreender de onde vim e porque sou, para onde poderei ir e porque ir, quem construiu a mim e quem construiu aqui.

Mas não é óbvio que aqui é um bairro de mulheres? Valéria foi o nome de uma das donas das fazendas que formaram este território. Bom, de certo é a única notícia que sabe-se sobre ela, de fato, de relevante apenas é seu nome, e ainda bem, porque há histórias muito mais coloridas e significantes a se afirmar. Assim, de origem essencialmente rural, Valéria é reflexo de boa parte dos territórios da Bahia, onde é comum uma sociedade marcadamente matriarcal (e negra), no qual a mulher é figura estruturante dos modos de ser, habitar e viver (Hita, 2014) – minha avó, no fragmento “Eu vim daqui”, caracteriza este modo de ser de sua mãe como um dom de “servir” (termo utilizado por ela) a todos, de casa e da comunidade. Tal matriarcalidade é notória, tanto na memória oral das mulheres e homens daqui, quanto na vivência, ao observar por toda a vizinhança quem está articulando cotidianamente modos de viver para todo uma rede familiar e/ou social. Este gesto ancestral atrai, principalmente para elas, a função de preservadoras da memória, mesmo inconscientemente, são elas que estão mais envolvidas com atos de sociabilidade em rede (femininas) e os atos de cuidado que também estão produzindo o espaço externo à casa. 

Neste contexto, a água, do mesmo modo que flui, correndo em forma raízes por debaixo de boa parte das terras daqui e emergem (emergiam...?) quando encontram onde desabrochar, carregam memórias vivas, afinal seu ciclo ocupa todos os meios e tempos, e nós somos quase que água pura. Sempre que iniciava um diálogo com mulheres, questionando sobre como foi sua vida morando aqui, elas já introduziam suas lembranças das fontes, das lagoas, a única forma de lazer que tinham e a relação com os afazeres domésticos que estavam fortemente interligados com o trabalho com a água. Uma tia me conta com alegria, as estripulias que aprontava quando jovem no segredo das fontes, já minha mãe (mais nova) narra como eram felizes os passeios que esporadicamente ela e seus amigos faziam até a Lagoa da Paixão, já as mais velhas narram sobre o trabalho diário que enfrentavam para catar água nas fontes, limpar a fonte, lavar e quarar as roupas, pegar água de beber, toma banho... Todas juntas, zelando e respeitando seus espaços, na maioria das vezes. E ocupando estes lugares de água, no labor e no lazer diário, estas mulheres conectam-se entre si e a estas correntes (de água), construindo espaços de potencialidades latentes e de memórias fervescentes.

A trajetória das irmãs Oliveiras

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Colagem: autoral

Áudios: 

Voz 1: relato de memória de Dona Neném, 67 anos, moradora do bairro desde 1954. 

Voz 2: relato de memória de Dona Nilza, moradora do bairro nascida e criada. Gravado em: 01 de fevereiro de 2020.

A mulher mais velha com quem conversei foi Dona Neném (67), junto com ela estavam suas irmãs Dijó e Lúcia, com uma família matriarcal em boa parte de seus segmentos, possuem memórias muito vivas de suas trajetórias, estas, que como as da minha família, se mesclam às histórias de nosso bairro, afinal somos protagonistas deste processo. Todas moram no mesmo terreno, em casas separadas, já que é comum em bairros populares, se ramificaram a partir da casa central, esta foi a casa que ficamos trocando figurinhas. Na verdade, eu apenas sentei e ouvi, o que melhor fazia frente a tantas memórias dançando sobre mim, me senti sortuda de encontrar uma contadora de memórias tão perto. De certo, não ignoro o quanto a memória oral pode ser cheia de desvios, esquecimentos, omissões, e todos estes elementos são cabíveis de interpretações, como a própria Dona Neném afirma na áudio-colagem: “(...) alguma coisa o miolo cozinhou de velhice, né?!” Cabe compreender que por mais que os diálogos sejam intensos e muito informativos, é um recorte do que a memória se propôs a trocar, e a partir dela fabular interpretações diacrônicas (Bosi, 2003). 

As irmãs Oliveira (como irei chamá-las) moram na região de Nova Brasília, e assim como boa parte da população dali, conseguiram espaço para habitar através de uma invasão em um terreno vazio. Nesta região haviam grandes glebas de terra, e as invasões foram intensas adensando rapidamente a área, a partir da década de 1960 (compreenda melhor vendo o fragmento: “Trajetos, margens e centralidades”) e possuindo outro pico na década de 2000, a Nova Brasília é marcadamente reconhecida por abrigar “forasteiros”. Adjetivo que não cabe de modo algum pesando que todas(os) estão continuamente e coletivamente colaborando no fazer o espaço, fato que fica evidenciado ao me contarem como foram suas vivências desde a infância até a vida adulta, desde as brincadeiras de roda na frente de casa, às latas d’água na cabeça desde de meninas para ajudar nos afazeres domésticos, o protagonismo dentro da igreja católica que as proporcionou muito conexões com a comunidade e de certo modo, uma ação política, e ainda a liderança comunitária mais diretiva, ao atuar na (inativa) Associação de Moradores de Nova Brasília. Mas, o que mais me chama atenção ao elaborar a subjetividade de alguns relatos, é o valor de acervo de memória que existe nessas mulheres negras, o poder que existe em uma troca de palavras simples em uma tarde domingo, ao mesmo tempo o quanto estas falas estão marcadas por ranhuras sociais que para algumas delas ainda é sinônimo de luta por afirmação e para outras traz total descrença. Por isso, afirmar estas memórias (e aqui só existem trechos) é um ato político, perceber estes corpos performando modos de ascender frente às desigualdades é um ato político (Martins, 2003).

O cozinhado e as heranças

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Colagem: autoral

Áudiorelato de memória da minha avó Avani (materna), 66 anos, moradora, nascida e criada  e professora de escolas em Valéria.  Gravado em: 22 de novembro de 2020.

Conectada às histórias das irmãs Oliveira, e deste ação relacionada à igreja católica aqui no bairro, é importante destacar o protagonismo das freiras franciscanas italianas desde os primeiros movimentos de inauguração de uma Paróquia aqui no bairro. Nomes como Irmã Maria Paula, Irmã Antonieta e Irmã Margarida sempre aparecem nos relatos de moradoras(es) mais antigos, não por acaso, já que estas foram responsáveis pela gestão das primeiras instituições de serviço público do bairro, como o Posto de Saúde – que recebe o nome de Frei Benjamim, figura pública bem conhecida e influente no Estado que morou muitos anos aqui no bairro, pois idealizou a construção destas instituições –, e a Escola comunitária que funcionava na Associação Valéria Pede Socorro, bem como diversos projetos sociais de educação e cultura, que recebiam muito mais mulheres. Atualmente, apenas uma delas ainda vive no bairro, mas com poucas ações ativas. Outra rede conectada à Igreja Católica são as irmãs Ancilas, irmãs que possuem uma escola comunitária na região do DER-BA e atuam ativamente com educação, arte e formação técnica profissional, mais sobre estas mulheres estará no Fragmento “Redes Ativas e Afetivas”, porém é importante destacar que seu trabalho é protagonista na articulação e serviço comunitária aqui no território, sendo uma das poucas atuações políticas desconectadas a alguma ação partidária. É relevante acentuar estas atuações, ao modo que também é notório que outros tipos de articulações vinculadas à ideologias não foram acessadas por mim até o momento, mas assim como a Igreja católica, os terreiros de candomblé e Umbanda estão aqui desde os primeiros períodos de ocupação (datados) na década de 1920, quem sabe anteriores a isto? Fica aí sinalizado mais um mergulho futuro.

Por fim, é importante falar das histórias protagonizadas pelas professoras de Valéria, profissão que marca muitas moradoras antiga, já que muitas destas contaram com a articulação e referência da Professora Joanita, e enxergavam, nesta atuação, uma possibilidade de ascender através de um trabalho mais estabilizado. Dona Joanita, primeira professora do bairro de Valéria e fundadora da primeira escola do bairro a Escola Maria Luiza (não encontrei data exata, mas minha bisavó (1932) e bisavô (1922) foram alfabetizados nesta escola) era concursada pelo Estado e pela prefeitura, e por isso, alugava sua escola para servir enquanto instituição pública, além de escola privada e escola de catecismo. Além de ser uma grande referência às moradoras e moradores, possuía grande influência política, possibilitando articulações que beneficiassem  a população, como conexão para empregos em outras escolas e instituições, e ganhos estruturais para sua escola no bairro. Muito amiga de nossa família, foi quem conseguiu o primeiro emprego para minha avó, na escola que coordenava e dava aulas na Palestina, também pública, Escola Berenice Soares da Rocha. Sua articulação ultrapassava fronteiras e sobreviveu ao esquecimento das memórias, pois é difícil encontrar alguém que ao menos já não tenha ouvido alguma de suas histórias, e assim, mesmo após falecer, sua família manteve seu legado, e sua escola ainda está de pé. 

Mas, mais importante que o legado educacional, foi o legado político e o protagonismo feminino que a caracterizam, lembrando-me de outra figura política, externa, mas muito conectada ao território pela sua contribuição direta na luta pela regularização da contratação de professores no fim da década de 1990. Minha avó rememora a atuação de Maria José Rocha Lima (líder sindical e reconhecida como a primeira deputada negra no estado em 1990) nos processos de luta pelos direitos de professores e profissionais da educação pública no estado, foi nesse processo que minha avó e todas as suas colegas, conseguiram direitos básicos de trabalho que lhe eram negados, como salários mensais, décimo terceiro e férias remuneradas. É um relato bastante emocionado, pois ela reviveu momentos em que a atuação coletiva foi determinante para garantir dignidade e reconhecimento a uma classe que reivindica estas bandeiras até hoje.

Feminino Afeto (clipe editorial de moda)

Vídeo-editorial: produzido pela moradora, nascida e criada, Sarah Silva Borges (23 anos), design de moda.

Apresentado enquanto produto do Trabalho de Conclusão de Curso do curso de design de Moda:

"A coleção de estreia da Ô Vó Brechó terá como tema, Feminino Afeto, a importância da afetividade familiar na construção do feminino dos indivíduos. Essa afetividade é representada no contexto da memória. Já o feminino entra pela tendência do sagrado feminino, despertada pelas questões de gênero tão em voga e pela maior entendimento do ser mulher, suas especificidades e implicações. Será abordado, como tema secundário, atrás da afetividade, a ancestralidade. (Texto-resumo de Sarah Borges, 2018)

REFERÊNCIAS

Colagens:

As fontes e os adensamentos: 

Fotografia da Rua Nova Brasília, próxima ao Cajueiro, na década de 1960. Fonte: Valéria News (página Facebook).

A trajetória das irmãs Oliveira:

Fotografia da Rua Nova Brasília (2020). Fonte: acervo pessoal.

Fotografia de Dona Neném (2020). Fonte: acervo pessoal.

O cozinhado e as heranças:

Fotografia de minha avó materna, grávida de minha mãe (1975). Fonte: acervo pessoal.

Texto:

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. [S.l: s.n.], 2003.

HITA, Maria Gabriela. A casa das mulheres n’outro terreiro : famílias matriarcais em Salvador. Salvador : EDUFBA, 2014. 513 p.

MARTINS, Leda. Performances da Oralitura: corpo, lugar da memória. Revista do programa de pós-graduação em letras, Universidade Federal de Santa Maria (UFMS), Santa Maria-RS, n.26, 63-81, jun. 2003. Disponível em:  https://doi.org/10.5902/2176148511881

- Sobre Maria José da Rocha (Zezé), Informações disponíveis em: http://www.al.ba.gov.br/deputados/ex-deputado-estadual/5000396

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